Um dândi japonês entre nós

Estação Liberdade lança romance inédito no Brasil de Natsume Soseki, que marca o despertar do individualismo no romance nipônico

A Editora Estação Liberdade publica mais uma obra-prima da literatura nipônica inédita no Brasil. Depois de Eu sou um gato (2008), estreia de Natsume Soseki (1867-1916), chega às livrarias E depois, com tradução para o português diretamente do original japonês, por Lica Hashimoto, que já traduziu Dance, dance, dance, de Haruki Murakami, para este selo.
Considerado o primeiro romance psicológico do autor, E depois inaugura o estilo que marcará seus últimos trabalhos, nos quais há grande destaque para a construção da interioridade dos personagens. A linguagem é direta e econômica, com digressões que ressaltam um caráter analítico.
Soseki é o patrono da literatura moderna em seu país. No Brasil, já foi comparado a Machado de Assis (1839-1908), sobretudo pela grande influência de Lawrence Sterne (1713-1768) sobre a obra de ambos.
O universo de E depois é compacto e gira todo em torno do protagonista Daisuke Nagai e sua visão de mundo. Jovem solteiro de 30 anos, ele não trabalha nem vê razão para tal. É sustentado pelo pai abastado, que, por sua vez, não se incomoda tanto com a ociosidade do filho, afinal, dinheiro não lhe falta. No entanto, exige que seu herdeiro se case, por uma questão de valores sociais e de interesse para os negócios. Essa situação é uma ofensa para o espírito do filho, contestador da ordem moral vigente e que busca afirmar o tempo todo a importância do individualismo.
Historicamente, o romance reflete as transformações provocadas pela Restauração imperial Meiji, iniciada em 1867, quando os imperadores retomam o poder depois de séculos de xogunato. Nessa época, o Japão era ainda uma nação periférica que visava igualar-se às grandes potências e que iniciava a abertura para o Ocidente. Para Daisuke, esse desejo resulta em uma preocupação em manter uma fachada, escondendo as mazelas nacionais. Questiona a forma como o próprio pai enriqueceu nesse novo contexto econômico, mas não o enfrenta. Orgulha-se de ser um covarde.
“Daisuke é típico dândi, sensível, inteligente, vaidoso, frequentador das altas rodas, grande apreciador das artes e das gueixas. A visão crítica que tem de tudo o que o cerca, no entanto, está longe de torná-lo um rebelde padrão, tampouco sem causa. São muitas as causas e razões desse protagonista, como revelam suas digressões mordazes”, como destaca a orelha desta edição. “Herói às avessas, Daisuke carrega um incômodo permanente numa vida repleta de comodidades, uma vivacidade colocada sempre em dúvida por sua hipocondria.”
Todos esses embates, Daisuke trava mais em sua interioridade do que com a realidade, vai na medida do possível engambelando a família até que uma situação o coloca contra a parede: passa a gostar da mulher de um grande amigo. No entanto, o triângulo amoroso não é mote para sentimentalismos, mas o combustível de um homem decidido a romper padrões.
O autor Soseki nasceu em Tóquio em 5 de janeiro de 1867. Teve infância difícil e solitária. Foi entregue pelos pais a outra família com apenas dois anos de idade, retornando a casa aos nove. Torna-se órfão de mãe aos quatorze anos, e sofre rejeição por parte do pai. Estuda literatura tradicional chinesa desde a infância.
Ingressa, aos 23 anos, na Universidade Imperial (atual Universidade de Tóquio), para cursar literatura inglesa. Começa, antes mesmo de se formar, a lecionar inglês na Escola Especializada de Tóquio (hoje, Universidade Waseda). Crises nervosas o fazem abandonar Tóquio e o prestigioso cargo que possuía. Estabelece-se em Ehime (Shikoku), onde é professor numa escola secundária.
Em 1900, viaja à Inglaterra como bolsista do Ministério da Educação para estudar literatura e ensino da língua inglesa. Não se adapta à cultura ocidental, entra novamente em depressão e regressa ao Japão em 1903, retomando o magistério. A vida doméstica entra em crise, e afasta-se da família.
Estreia com Eu sou um gato em 1905 (Estação Liberdade, 2008), obtendo notável recepção de crítica e público. Abandona o ensino dois anos depois, dedicando-se a partir de então unicamente à literatura, tornando-se escritor exclusivo do diário Asahi Shimbun.
Em 1910 é acometido por uma primeira crise de úlcera. Pouco depois, recusa a titulação de doutor. Falece em 9 de dezembro de 1916, de sequelas de suas úlceras.
Marcou época opondo-se à voga naturalista reinante na Era Meiji, pregando um maior individualismo. O que o levaria também à introdução precoce de aspectos psicológicos na construção de seus personagens.
Suas principais outras obras são Botchan (1906), Sanshiro (1908), Mon [O portal] (1910), essas duas últimas compõem uma trilogia com E depois. Soseki permanece até hoje como um dos escritores mais populares e lidos do Japão. Destacou-se em todos os tipos de escrita, assinando importante obra de teoria literária, totalmente inovadora para a época. Se de um lado foi marcado pela influência ocidental, de outro apregoou a valorização da cultura tradicional nipônica.
 
Trechos

“O pai se vangloriava de ter lutado na guerra. E, sempre que podia, jogava isso na cara de Daisuke, dizendo que o fato de o filho não ser corajoso e ousado era porque lhe faltava essa experiência. Segundo seu pai, ou pelo menos era o que deixava transparecer, o único e o melhor atributo de um homem era a coragem. E toda vez que Daisuke ouvia isso, sentia um desagradável mal-estar, pois considerava a coragem um atributo necessário para o homem sobreviver numa época selvagem, como a que viveu seu pai quando jovem, um tempo em que havia muitas matanças. No entanto, na atual civilização, a coragem não passava de uma arma primitiva tal qual o arco, a flecha e a espada. Não. Para enfrentar a civilização atual eram necessários outros atributos muito mais apropriados e bem mais eficazes, incompatíveis com a coragem. Daisuke ouviu de seu pai, pela enésima vez, como era importante o homem ser corajoso. Certa vez, Daisuke e a cunhada deram risadas de um comentário que ela fez a respeito do pai dele: ‘Do jeito que seu pai fala, o único que se salva no mundo é o jizo15 de pedra.’

Um homem como Daisuke era realmente um covarde. Mas, no íntimo, isso nunca foi motivo para se sentir constrangido. Muito pelo contrário, em certas ocasiões tinha até vontade de se vangloriar da própria covardia.” (pp. 36-37) 

“— Se você não gosta do ramo empresarial, tudo bem. Ganhar dinheiro não é a única maneira de ser útil ao Japão. Não precisa necessariamente fazer algo por dinheiro. Acho que você não ia se sentir bem em trabalhar com esse intuito. Não se preocupe com dinheiro. Vou continuar a prover seu sustento, como sempre fiz. Não sei quando vou morrer, mas, seja lá quando for, uma coisa é certa: não vou poder levar o dinheiro... A mesada para seu sustento é um valor que sempre se pode dar um jeito. E então? Que tal você começar a pensar em fazer alguma coisa? Pense nisso como dever de um cidadão. Você já tem trinta anos, não é?

— Tenho.

— Que vergonha! Trinta anos... E sem fazer nada o dia inteiro... Como pode?     

Daisuke não se considerava um ocioso. Ele apenas não passava a maior parte do tempo vivendo exclusivamente para o trabalho, já que se considerava uma espécie humana de excelência. O fato é que, todavez que seu pai insistia nesse assunto, Daisuke sentia pena dele. O cérebro pouco desenvolvido de seu pai não conseguia perceber que o filho aproveitava o tempo de um modo muito mais significativo, cristalizado em pensamentos e emoções. Sem outra opção, Daisuke limitava-se a esboçar uma expressão séria e concordava:— Realmente, é um problema.”(pp. 39-40)

 “Daisuke tremeu como se alguém tivesse jogado um balde de água fria em suas costas. Os dois, cujas almas estavam prestes a serem banidas pela sociedade, entreolharam-se em silêncio por um bom tempo. E, juntos, sentiram medo dessa força existente neles, capaz de ir contra tudo e todos. Decorrido um tempo, Michiyo, subitamente apavorada, cobriu seu rosto com as mãos e caiu em prantos. Não suportando ver Michiyo chorar, Daisuke ficou de joelhos e, com a mão apoiada na testa, cobriu o próprio rosto com os dedos. E permaneceram imóveis, cada qual mantendo sua respectiva posição, como se retratassem estátuas do amor.” (p. 234)

“Depois do pai, precisaria enfrentar o irmão, a cunhada, e ainda Hiraoka. E, mesmo após se desvencilhar de todos eles, teria de enfrentar toda uma sociedade. Uma sociedade que, tal qual máquina, era incapaz de, mesmo que minimamente, tolerar a liberdade individual e discernir os sentimentos pessoais. Daisuke enxergava essa sociedade como que mergulhada na mais absoluta escuridão. E decidiu enfrentar tudo e todos. O próprio Daisuke se surpreendeu com a tamanha coragem e disposição que existia dentro dele. Até então, ele se considerava um perfeito cavalheiro, cauteloso e pacífico, que detestava atitudes extremadas, incapaz de se expor ao perigo e que odiava desafios. E, a despeito de nunca ter praticado um ato covarde, sua consciência não o deixava negar que ele era, de fato, ignavo. (p. 237) 

Fonte: assessoria de imprensa institucional